“Porquê dez milhões de
anos é um tempo tão frágil, tão efêmero...Isso incita tamanha amargura, um
afeto quase doloroso.”
É com a citação acima que
começam todos os episódios da série em anime de 1999 dirigida por Akitaro
Daichi (Fruits Basket, Bokura ga Ita) nomeada Ima soku ni iru Boku ou Now and
Then, Here and There, cuja qual conta a história de Matsutani Shuzou(Shu) e
suas aventuras após ser levado para outro mundo quando tentava salvar uma
garota(Lala Ru) perseguida por soldados montados em máquinas de guerra.
É uma sinopse bem comum,
ainda mais sendo lida em uma época como a atual onde existe todo um gênero de
histórias no mundo da animação japonesa que corresponde justamente a um padrão
de roteiro criado para saciar as fantasias de um público ávido dos video games
de fantasia mágica, que anseiam por uma uma chance de se enquadrar em uma vida
dentro desses mundos alternativos. Dai surge toda a repetitividade de histórias
com temas semelhantes, onde um protagonista japonês padrão é levado
misteriosamente a outra realidade onde tem que conviver com a fantasia medieval
e na maioria das vezes, com o harém.
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Shu e Lala Ru |
Ao ler a sinopse acima e até
mesmo assistindo o primeiro episódio do anime em questão pode-se imaginar que
ele se trata de uma história de temática semelhante, divergindo talvez no que
tange a ambientação, se tratando de algo mais steampunk e menos fantástico. Mas
as diferenças não param por aí.
Shu é um garoto hiperativo,
cabeça quente e otimista que acha que tudo pode ser resolvido seguindo sempre
em frente, o típico protagonista que seria exaltado em um shonen noventista,
mas já no primeiro episódio podemos ver que nosso protagonista não está lá para
ser exaltado, para ser feliz e resolver todos os seus problemas com esforço e
ter um final feliz. Não, ele está lá para ser contestado, para ter seu jeitão
impensado de viver jogado por terra. É um simbolismo simples, um típico
protagonista shonen, idealista e com uma visão estreita de mundo e
valores(estes passados ao seu público em sua demografia) tendo tudo isso posto
a prova diante a dura realidade que seus sonhos infantis de heroísmo e
masculinidade jamais permitiriam conceber, a fria realidade da guerra.
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Nabuca |
Não se deixe enganar pelo
character design, este que pode ser assemelhado a uma fantasia Ghibli, mas que
foge totalmente as mensagens otimistas que os filmes desse estúdio tendem a
passar mesmo em meio a crítica de temas sérios. Diferentemente dos trabalhos
desse estúdio, as críticas em Ima Soko ni Iru
Boku são passadas de maneira crua, estão presentes de forma a retratar
com os mínimos eufemismos possíveis a crueldade de um cenário de guerra. Fome,
violência, trabalho infantil e estupro, são apenas alguns exemplos do que é
representado nesta realidade, e claro, se tornam muito mais chocantes ao vermos
aqueles a quem sempre atingem, os inocentes.
É quase irônico que o
cenário onde se passa a história do anime seja desértico, mas com certeza é
muito acertado. A realidade pintada nesse universo não tão distante de outras
realidades não inventadas pode soar pitoresca a primeira vista, mas não é necessária muito reflexão
para se perceber características que de certo não fogem a um certo senso comum
quando se fala do tema retratado.
Não é de se estranhar o quão
desconhecido seja essa animação, que pode ser explicado pelo simples motivo da
proposta da própria, que ao invés de tentar proporcionar o prazer ao
expectador, vai pelo caminho oposto, buscando o desconforto, a inquietação,
tentando faze-lo refletir os temas propostos. Você não encontrará recompensa em
sua experiência de expectador dessa obra, no máximo a aversão, o próprio ritmo
seguido pelo roteiro é lento, arrastado, feito para que você tenha tempo para
parar e pensar no que está acontecendo, não há desculpas para não receber a
mensagem passada.
Vale comentar que o cenário
da história, o mundo alternativo(ou futuro distópico, dependendo de como você
resolve interpretar) desértico assolado pela guerra, mais especificamente, a
fortaleza máquina de guerra Hellywood, centro de toda a trama, comandada pelo
lunático Hamdo, que transformou a mesma em uma máquina de guerra em todos os
sentidos, sob um sistema que atacava vilas para sequestrar crianças que eram
treinadas para se tornarem seus soldados, tática comum em meio a zonas de
conflito.
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Hellywood |
Ao comentar um pouco sobre
os personagens desta obra vale ressaltar que eles são concebidos de maneira
magistral, desde o anteriormente citado Shu, que por mais irritante e
inconveniente seja, não deixa de cumprir como dito seu papel chave na mensagem
da obra, e o mesmo pode ser dito em todos os demais. O cuidado em representar a
maior parte de pontos de vista possíveis daquele mundo e toda sua situação é
admirável, e isso sem que ninguém seja exaltado ou condenado, ao final todos
sofrem as consequências de sua realidade não importando como eles a encaram.
Estes personagens como dito,
estão lá para serem testados, contestados, levados ao extremo de seus ideais e
crenças, é literalmente pegar crianças do primeiro mundo e jogá-las em meio ao
oriente médio, uma proposta forte, um jogo surreal dos realizadores que brincam
com o choque de realidade, com as disparidades do mundo como o conhecemos, uma
brincadeira reflexiva.
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Hamdo e Abélia |
Por exemplo, acompanhar a
trajetória do sofrimento, superação e suas consequências de Sara é uma
experiencia ímpar, seja para o mal, seja para o bem, não há como não admirar a
equipe pela coragem de expor os temas retratados pelas experiencias da
personagem. O mesmo pode ser dito de Nabuca, em sua negação de aceitar a
realidade disfarçada de otimismo frente a sua situação e de seus companheiros,
ou até mesmo Abélia, com sua devoção sentimental frente a Hamdo, não há
personagem neste anime que não se mostre interessante ou que não faça
minimamente sentido dentro do roteiro, até mesmo a apática Lala Ru, sempre com
sua expressão sofrida no rosto, basta ouvir seu primeiro diálogo que se preze
no anime para descobrir que a personagem é muito mais do que a primeira vista
aparenta.
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Sara |
Por fim, não resta dúvidas
de que Ima, Soko ni Iru Boku é uma experiencia que se pode levar para a vida, o
tipo de pérola que se encontra em meio ao palheiro de que se faz a industria da
animação japonesa, fica aqui minha recomendação, apreciem esta obra e se deixem
levar pela amargura que não deixará de ser sentida, mas não se enganem, não é
uma obra feita para se retrair em depressão e sim algo a ser levado em conta
quando emergir como alguém melhor.
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